“Destino” – Capítulo II

Sem memória e sem saber o que o futuro lhe reserva, chegou a hora de Anete abandonar o convento.

Vamos conferir o segundo capítulo de “Destino”. Perdeu o primeiro? Confira aqui: http://www.hollywoodeaqui.com/apresentando-m-a-jr-e-a-saga-de-anete/#.UYBTAbXvuSo

CAPÍTULO II

Enfim, passaram-se as duas semanas que Anete tinha para sair do convento. Ela havia procurado trabalho por toda a parte, sem nada conseguir. Não tinha experiência nenhuma. As únicas coisas que sabia fazer eram os trabalhos domésticos. Mas, devido a onda de violência que afligia o lugar, ninguém contratava uma estranha. Ela precisava de referências. A Madre era uma pessoa idônea, uma serva do Senhor. Ela, que poderia usar de sua influência para ajudar Anete a conseguir trabalho, nada fez a respeito. Cada dia se tornava pior, mais cruel e dura com as irmãs. Queria ver Anete na rua, não importava se mendigando para sobreviver, desde que estivesse longe dali.

Aquela era a última noite de Anete no Santa Clara de Jesus. Ela não tinha ideia do que aconteceria no dia seguinte. Suas malas prontas, esperando apenas o dia amanhecer. Seguiria seu caminho rumo ao desconhecido.
As horas passavam, Anete estava exausta por ter trabalhado tanto. Aqueles últimos dias foram muito difíceis. A Madre a explorava ao máximo, como se tentasse fazê-la ir embora antes do tempo. Naquele dia, ela havia lavado toda roupa de cama do convento sozinha. E coitada de quem ousasse ajudá-la. Justine estava inconformada com essa situação e já se preparava para sair junto com Anete, não suportava ver a amiga passar por aquilo.

Mas, Anete a havia convencido de que era melhor ficar quieta. Se meter nessa história poderia ser ruim pra ela. Afinal de contas, continuaria sobre o mesmo teto que a “Megera de Preto”, como estava sendo chamada a Madre. Justine, também havia feito uma carta com mil recomendações para sua família, que morava em uma cidadezinha no interior do estado vizinho, para que eles ajudassem Anete a conseguir trabalho e dessem apoio a ela em tudo que fosse possível.
Os olhos de Anete pesavam, o cansaço era muito grande e sem esperar ela estava pegando no sono.

Ela caminhava por um lindo jardim. Um jardim tão grande que não parecia ter fim. Muitas flores, frutas e coelhos espalhados dando vida ao local. Pássaros cantando e voando. Tudo na mais perfeita harmonia. O céu era de um azul sem igual, majestoso. Anete caminhava, sem saber aonde ia, mas sem se importar de estar sem rumo. Era o primeiro sonho bom que tinha em muito tempo. Ela se recordava de já ter sonhado com algo assim, mas em um passado muito distante.

As flores eram de uma beleza indescritível, com suas cores e formas tão variadas que Anete as observava com extrema curiosidade. Algumas ela reconhecia, do jardim do convento, outras ela não podia imaginar que existiam. Rosas de tantas cores, orquídeas, lírios, flores do campo. Uma flor, em especial, chamou sua atenção. Ela era única e Anete não conseguia parar de olhá-la. Não sabia dizer o que, mas aquela flor lhe lembrava algo.

Trazia a sensação de algo bom, esquecido no fundo da sua mente e que diante daquela imagem tentava vir à tona de alguma forma.

Que flor era aquela? Por que ela prendia tanto sua atenção? Em meio a tantas flores, o que aquela tinha de tão especial? Anete não sabia ou não lembrava, apenas sentia uma vontade imensa de ficar ali, admirando sua brancura, talvez tocá-la, sentir seu perfume.

A grama era verde, macia, e Anete estava descalça, sentindo aquela sensação boa sob seus pés. Seu vestido branco balançava ao vento e seus cabelos negros se movimentavam em um leve ir e vir em meio aquele clima de paraíso.

Depois de algum tempo admirando aquela flor, Anete notou que pessoas passavam por ela sorrindo, conversando, brincando. Não havia dor, sofrimento ou maldade. Alguém se aproxima dela, um homem que lhe oferece uma fruta, algo que parecia ser meio enrugado por fora e branco por dentro. Disse para ela provar, sentir como é doce, como é saboroso.

Nossa que lugar mágico e que pessoas tão alegres e gentis. Quem era aquele homem tão simpático? Deveria ter uns 25 anos. Tinha os olhos castanhos e o cabelo curto, era magro e tinha um sorriso bonito. Vestia uma camisa azul e uma calça jeans desbotada. Mas, não se apresentou. Apesar da simpatia, ele não tinha um olhar feliz ou bondoso. Seu olhar era atento, olhava com provocação. Mas, lhe sorria com tanta gentileza, que ela não tinha como não lhe sorrir também.

– Está admirando a kadupul? – perguntou o jovem, que havia acabado de lhe entregar o fruto.

– Como? – ela fez uma cara de que não havia entendido o que ele quis dizer ao mencionar aquele nome estranho.

– A kadupul, a flor – ele se inclinou em sua direção apontando a flor que a tinha deixado tão encantada – perguntei se você está a admirando.

-Sim, estou. Ela é linda.

– É, muito linda mesmo e rara. Apenas aqui ela consegue ficar assim, desabrochada e magnifica por tanto tempo. Em outros mundos, sua beleza não dura mais do que algumas horas.

Ela olhou mais uma vez a flor, e tentou entender o que aquele homem havia acabado de lhe dizer sobre outros mundos. O que será que aquilo significava? Outras culturas, países ou regiões?

Ela virou-se para o homem, para perguntar o que ele queria dizer com aquilo. Sentia que havia um tipo de ligação entre ela e aquela diferente flor de pétalas brancas. Mas não foi possível, o homem já estava um pouco distante, conversando com outras pessoas. Também lhes dando frutos, assim como havia feito com ela há pouco.

Como seria bom que aquele lugar fosse real, que Anete pudesse ficar ali pra sempre. Sem precisar voltar para aquela realidade tão dolorosa. Ali, onde as pessoas pareciam tão bondosas, acolhedoras e carinhosas.

Anete tentou ir em direção ao homem, tentar saber mais sobre aquela flor. Aquilo havia mexido com ela, queria mais informações. Foi quando algo começou a acontecer.

De repente, Anete começou a sentir um cheiro estranho que parecia ser fumaça. Tinha alguma coisa errada, aquele local era perfeito, não tinha por que ter esse cheiro. Não havia fogueiras, nada estava queimando, não havia um só sinal de algo dando errado. O cheiro estava ficando cada vez mais forte, sem que ela soubesse sua origem.

O rapaz havia sumido, a fruta não estava mais em suas mãos. Aquelas árvores, os animais, tudo começou a desaparecer. As pessoas que estavam espalhadas pelo lugar, uma a uma foram sendo engolidas por uma sombra escura, desaparecendo de maneira misteriosa. Seu coração começou a ficar acelerado, o medo foi tomando conta de seus olhos, o ar começou a ficar completamente pesado e aquele dia foi se transformando em uma terrível noite, em questão de segundos. Aquele lugar estava sendo inundado pelo cheiro de queimado e pelo calor. O que estava acontecendo? O céu começou a escurecer e Anete começou a se sentir sufocada. A grama antes verde se tornava mato queimado, com uma coloração escura, marrom.

Anete começou a tossir, a se sentir ainda mais sufocada e tentava pedir ajuda. O pânico se espalhando pelo seu corpo. Aquele lugar tão bonito, aquele sonho tão bom, começava a se transformar em um horrível pesadelo, mais um pesadelo. A respiração estava falha, seus sentidos queriam ir embora, ela não conseguia enxergar mais um palmo a sua frente. Uma vasta fumaça negra percorria todo lugar e o gosto ruim daquele ar pesado descia por sua garganta.

Ela estava sufocando, o coração a mil por hora, os olhos vermelhos ardendo, a pele quente, as mãos apertando o que antes era um lindo gramado.  Seu cérebro doía, sentindo que não existia mais ar puro percorrendo seu corpo, era uma dor indescritível.

– Acorde Anete! Acorde – gritava a irmã Quitéria – tudo está queimando, acorde.

Anete acordou de repente, sendo puxada daquele sonho pela freira, que parecia tentar lhe acordar há algum tempo. Tudo queimava. O quarto repleto de fumaça. Anete abriu os olhos e tossiu sufocada.

– Graças a Deus que você está bem – disse Quitéria – venha, precisamos sair daqui.

– O que está acontecendo? – perguntou Anete parecendo confusa – por que tudo está cheio de fumaça? O que está havendo? – ela tossia, falava ofegante, quase sem ar. Olhava para os lados rapidamente, virando a cabeça em todas as direções, enquanto suas mãos apertavam os lençóis de sua cama, na tentativa de entender naquele rápido momento o que estava havendo.

– Não sabemos como aconteceu. Acordamos com o cheiro de fumaça, tudo estava pegando fogo e enquanto eu tentava te acordar a Justine foi retirar as crianças, antes que o fogo chegue lá.

– Então vamos ajuda-lá, não vai conseguir sozinha.

– Você está muito fraca, inalou muita fumaça Anete, a ambulância já está chegando, você precisa ser medicada, – dizia Quitéria enquanto saia com Anete do quarto a apoiando em seu ombro. – tudo que for possível será feito, Deus vai nos ajudar.

Anete estava confusa. Então, foi isso que aconteceu? Será que aquele cheiro de fumaça foi a realidade invadindo seu sonho? Ou será que, foi seu sonho que invadiu a realidade?

Anete se recompôs e ajudou as outras irmãs a sair. As irmãs estavam com alguns pedaços de pano molhado encobrindo o nariz, uma forma que elas encontraram de impedir que a fumaça fosse inalada.  Lá fora, ela respirou um pouco de ar puro. O fogo tomava conta de tudo. Todas as irmãs saíram e estavam a salvo. A Madre estava ajoelhada, chorando diante daquela catástrofe. Ela virou-se para o prédio vizinho, e viu que o fogo já tomava conta do local onde as crianças dormiam. O prédio agregado ao convento já estava em chamas, muitas crianças saíam correndo, mas outras ainda estavam lá dentro. As irmãs tentavam apagar o fogo com baldes d’água, mas sem sucesso. Era impossível acabar com aquele estrago com pequenas quantidades de água. Anete respirou fundo e caminhou em direção ao prédio. Os bombeiros haviam acabado de chegar, as freiras gritavam para ela não fazer isso. A Madre continuava a chorar, apenas ajoelhada.

Muitos vizinhos olhavam, a rua começava aos poucos a ficar cheia de curiosos, que haviam percebido o rastro de fumaça de longe. O perímetro já havia sido bloqueado para que apenas os bombeiros tivessem acesso e continuassem a fazer seu trabalho. E enquanto todos se preocupavam com o fato de ainda poder existir crianças lá dentro, Anete invadiu o local, sobre os olhares atentos dos que ali estavam aflitos com aquela situação de terror.

Ao entrar ela ouviu os gritos das crianças, que vinha de cima, do primeiro piso. O fogo devorava tudo, pedaços de madeira caiam do teto a todo momento, um quase bate em sua cabeça. Ela subiu a escada rapidamente, ofegante, com a mão cobrindo o nariz para tentar se proteger da fumaça. Seu rosto já estava tomado pela poeira, seus pés estavam descalços, sua camisola branca na altura dos joelhos impregnada pelo cheiro de fumaça que tomou conta do convento. Lá em cima, mais um pedaço de madeira caiu no caminho, bem a sua frente, abrindo um buraco que a atrapalharia na passagem. Ela deu alguns passos para trás, arrumou forças sabe-se lá onde, pegou impulso, correu e conseguiu saltar para o outro lado. Mais a frente, ela conseguiu entrar no quarto, que já estava tomado pelas chamas. Sua respiração continuava pesada, era difícil passar por aquele lugar. Quanto mais ela andava mais se aproximava dos barulhos de choro e gritos. Três crianças estavam no canto da parede, enquanto os móveis e as cortinas eram devorados pelo fogo. Ela entrou correndo, passando pelas chamas e chegou até as crianças. Eram dois meninos e uma menina.

O mais novo, um menino de três anos, loirinho de cabelos cacheados e que chorava sem parar, estava vestido com um pijama azul claro, com o desenho de um ursinho na frente e calçava meias brancas. A menina, que usava um vestidinho rosa com lacinho, feito de algodão, também usava meias, e deveria ter uns cinco anos, tinha cabelos lisos, os olhos um pouco puxados e a pele bem branquinha, já suja pela poeira e fumaça. Ela estava abraçada com o menorzinho, chorando de forma mais silenciosa, como quem tenta acalmá-lo. O outro menino parecia estar inconsciente. Talvez, já tivesse inalado muita fumaça. Estava sentado com a cabeça apoiada na menininha, usando um pijaminha parecido com o outro menino, talvez fosse uma roupa padronizada do convento, exceto pelo tom um pouco mais claro do azul. Ele devia ter quase a mesma idade do mais novo e tinha uns traços parecidos com os dele, talvez fossem irmãos.

Anete conseguiu chegar até lá, mas agora, o problema era sair. Todo o caminho estava destruído. Ficar a espera dos bombeiros era uma opção muito difícil. Eles já estavam ali, estavam em ação, mas a metade da escada que dava para o piso de cima estava destruída. O que iria acontecer agora com ela e aquelas crianças? As paredes que antes eram brancas estavam completamente negras pelos vestígios do fogo. O piso que também era claro era um caminho de destruição, onde se quer era possível ver a verdadeira cor da cerâmica. O teto fervia em chamas, dando indícios de que poderia desabar a qualquer momento. Mais vigas caíam e contribuíam para espalhar o fogo. Sair pela janela era uma opção impossível, o fogo já tomava conta do parapeito.

Ela os abraçou, os apoiou em seus braços de forma que pudesse proteger os três. Ela era magra, não tinha força para correr com três crianças naquela situação. Mas ela estava decidida, nada iria acontecer a eles três. Botando a cabeça para fora do quarto, ela olhou para baixo e viu que sem a escada, sua única opção era pular para o térreo. Era inevitável que ela se machucasse, e muito por sinal. Mas assim, eles estariam mais próximos da porta de saída, os bombeiros os encontrariam e as crianças poderiam ser socorridas. Ela fechou os olhos, os apertou contra seu corpo e pensou em uma forma de pular que não machucasse as crianças, e sem pensar duas vezes…

… Anete pulou.

Os bombeiros já estavam com tudo pronto para invadir o prédio. Eles usavam uns macacões marrons de tecido grosso, que deveria lhes dar proteção. Seus capacetes tinham um visor, para que eles pudessem enxergar ao passar por um vasto caminho de fumaça e suas luvas pareciam ser bem resistentes. Eles eram fortes, era possível perceber o volume de seus músculos por baixo daquelas roupas. Eles puxavam a enorme mangueira que estava ligada a um hidrante na calçada.

Justine e Quitéria gritavam para que eles entrassem logo. Diziam que tinha gente lá dentro. Anete estava lá e já devia estar inconsciente, acidentada, queimada, uma infinidade de coisas ruins vinha a suas cabeças.

Logo, uma das crianças veio correndo, deveria ter uns oito anos, tinha a pele negra, os olhos castanhos e usava um vestido de algodão rosa, estava toda suja de poeira. Ela puxou a irmã Justine pelo braço e disse:

– Tia, tia! Não consigo encontrar a Marina, o Henrique e o Diego.

– O quê minha filha? – Disse Justine

– Eles não estão aqui e eu não lembro de ver eles saindo, fui uma das primeiras a sair.

Logo, a Irmã Simone também se aproximou.

– Justine – disse ela em tom de preocupação – estão faltando três crianças, receio que eles ainda estejam lá dentro.

Uma forte explosão se ouviu, vinda do convento. Pedaços de madeira e do que restava foram pelos ares. As irmãs caíram com o impacto e as crianças choravam com o barulho. Os bombeiros se dividiam entre apagar o fogo dos dois prédios, na tentativa de entrar onde antes ficavam as crianças.

– O que é aquilo? – disse uma menininha chorando, apontando para o prédio em chamas.

– Alguém está vindo – disse Quitéria – é um milagre, é um milagre.

Os bombeiros correram na direção da pessoa que saia. Os paramédicos esperavam com os equipamentos prontos.
Uma moça saía agarrada a três crianças. Sua perna estava machucada, seu corpo encoberto pela poeira e cinzas. O cansaço e a dor gravados em seu rosto. Ela caminhou até os bombeiros, que tiraram as crianças de seus braços.

– Eles estão bem? – ela perguntava já sem forças – quero saber se estão bem.

– Eles ficarão bem – disse um bombeiro, pegando-a nos braços – você é uma heroína, uma louca… mas, uma louca heroína – disse ele tentando amenizar o clima pesado.

– Eu sei – disse ela, perdendo os sentidos.

 Continua…

 

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