Documentários indicados ao Oscar mostram o poder da arte em momentos de conflito

Verdade seja dita, eu já vi muitos, inúmeros, documentários de guerra e golpes de estado.

Mas nada igual a “Guerra da Porcelana” e “Soundtrack to a Coup d’Etat”, dois docs, sensacionais, indicados ao Oscar esse ano.

“Soundtrack to a Coup d’Etat”, uma produção caprichada que reúne as lendas do jazz e sua influência nos bastidores do golpe contra a independência do Congo, apoiado pelos EUA. Uma aula de história e de cinema e de música.

 

 

 

A trilha sonora é um dos destaques, mas os depoimentos inéditos e atuais de integrantes da CIA, juntamente com os vídeos originais e raros do que aconteceu na ONU e no Congo, também fazem desse doc uma preciosidade.

 

 

“Soundtrack to a Coup d’Etat”: Nações Unidas, 1960: o Sul Global desencadeia um terremoto político, os músicos de jazz Abbey Lincoln e Max Roach invadem o Conselho de Segurança, Nikita Khrushchev bate o sapato e o Departamento de Estado dos EUA entra em ação, enviando o embaixador do jazz Louis Armstrong ao Congo para desviar atenção do golpe apoiado pela CIA. O diretor Johan Grimonprez explora um momento em que o jazz, o colonialismo e a espionagem colidiram, construindo uma fascinante montanha-russa histórica que ilumina as maquinações políticas por trás do assassinato em 1961 do líder independentista congolês Patrice Lumumba. O resultado é um documentário revelador, ricamente ilustrado por relatos de testemunhas oculares, memorandos oficiais do governo, testemunhos de mercenários e agentes da CIA, discursos do próprio Lumumba e um verdadeiro cânone de ícones do jazz. A trilha sonora de um golpe de estado, vencedor do prêmio Sundance, interroga a história colonial para contar uma história urgente e oportuna que ressoa mais do que nunca no clima geopolítico atual.

 

 

Já “Guerra de Porcelana” mostra a guerra por um prisma completamente diferente de tudo que já vi até hoje. No doc vimos o poder da arte e como cidadãos comuns se tornam soldados para defender seu país. Tudo registrado por pessoas que, até então, não tinham nenhuma experiência com cinema, mas se tornam documentaristas ao gravar sua própria história.

 

 

“Guerra da Porcelana” segue Slava Leontyev, Anya Stasenko que criam estatuetas de porcelana em resistência à guerra da Ucrânia, ao mesmo tempo que Slava, ex-militar, ensina cidadão comuns a manusearem armas e os prepara para o campo de batalha. Andrey Stefanov se junta a eles em defesa do seu país e se torna o responsável por dirigir esse documentário, sem nenhuma experiência prévia como cineasta. O filme enfatiza o propósito da arte durante o conflito, bem como a união de profissionais liberais que passam a lutar como soldados para defender a democracia em seu país. A trilha sonora do filme traz música da banda ucraniana de folk/etno-caos DakhaBrakha. As imagens de “Guerra da Porcelana” incluem a bela paisagem da zona rural ucraniana, bem como os destroços causados por mísseis de guerra e foram capturadas pelo grupo de protagonistas desse documentário.

 

 

Eu tive a chance de assistir uma sessão do filme que contou com a presença de Slava Leontyev, Frodo, o cãozinho do casal que nos conquista desde a primeira cena, e os produtores estadunidenses do doc, Brendan Bellomo e Paula DuPre Pesmen. Compartilho aqui alguns destaques do papo e curiosidades sobre esse projeto desafiador e inovador que conquistou vários prêmios:

 

 

Slava Leontyev:

“Eu fui do exército e passei por outras guerras no meu país, mas eu já estava afastado e trabalhando com a minha esposa na produção das figurinhas de porcelana, quando essa guerra começou. Ai eu senti a necessidade de começar a ensinar aos civis, pessoas comuns que trabalhavam em empregos normais, como construção, designer, TI, a manusearem armas para lutar contra os inimigos e defender a democracia em nosso país.

Assim, conheci o Andrey e a gente teve a ideia de começar a gravar o nosso dia a dia. Mas não só a guerra, especialmente a nossa vida, a natureza, a nossa arte, a gente queria mostrar a beleza da Ucrânia, como uma forma de resistência a destruição. O Andrey começou a gravar a família dele também, as filhas e a esposa, antes delas deixarem o país. Começamos a colocar no YouTube porque a gente sabia que nós éramos as únicas pessoas que podíamos contar a nossa história. Mas era difícil porque a conexão de internet era péssima, eles cortavam a luz, mas valeu porque fomos surpreendidos com a proposta do Brendan e da Paula para fazer o documentário.

 

 

A gente não tinha experiência nenhuma, não somos cineastas, nunca tínhamos usado câmeras profissionalmente, mas fizemos nosso melhor. E, devo dizer, que o Andrey é um diretor nato, quando eu tentava me meter e dar uma opinião nunca dava certo, as ideias dele eram sempre melhores, ele realmente tem um olhar de diretor, tudo que vocês viram no doc foi feito do trabalho dele.

Gostamos muito do resultado e, imagina, pra gente é uma honra ter chegado até aqui, com uma indicação ao Oscar, o prêmio em Sundance, o reconhecimento do público. Mas é importante lembrar que a guerra continua, que vamos voltar pra casa e eu vou seguir treinando cidadãos comuns a lutarem com armas. E, enquanto estou aqui, nosso grupo segue na guerra também.

Outro ponto que eu queria destacar é a importância da arte, nesse momento. A Anya (esposa dele e protagonista do doc) sempre pintou as figurinhas com desenhos da nossa cultura, da natureza que nos cercava, mas agora ela passou a pintá-las inspirada pelas experiências que vivemos com a guerra. Porque eles prenderam e mataram todos os artistas, escritores, pintores, professores, eles destruíram as nossas bibliotecas, museus, centros de arte, escolas e nossas universidades, eles querem matar e acabar com a nossa cultura, nosso idioma, nossa música, mas nós estamos juntos e seguiremos produzindo como uma forma de resistência. Eles não vão nos calar.”

 

 

Brendan Bellomo:

“Quando vimos o vídeo, ficamos impressionados com o material e como eles estavam produzindo arte no meio da guerra. Vimos o potencial de fazer o documentário. Entramos em contato com eles, que toparam. Mas aí, tínhamos um outro desafio, precisávamos enviar mais câmeras pra eles e como enviar alguma coisa para um país em guerra? Não é fácil, mas através de uma maquiadora maravilhosa (sempre elas) que estava levando doações para a Ucrânia, via Polônia, conseguimos mandar as câmeras. E eles não tinham nenhuma experiência como cineastas, mas não precisaram de treino não, eles já tinham o olhar. O Andrey não sabia mexer nas câmeras, então só essa parte técnica que explicamos para ele, mas cada vez que recebíamos as filmagens, ficávamos mais boquiabertos com a qualidade e a beleza do material. A autenticidade da rotina deles que combinava a guerra com a natureza, as figurinhas.

Foram mais de 500 horas de filmagem em outro idioma, a pós-produção foi uma força-tarefa, mas estava todo mundo investido e determinado a fazer o melhor documentário, pois o material, a vida e a trajetória deles na guerra mereciam ser contadas, respeitando sempre o que o Slava, Anya, Andrey e o grupo queriam mostrar, como eles queriam contar a própria história.

 

Estamos radiantes, orgulhosos e realizados com o resultado como o doc foi abraçado pelo público, pela imprensa e pelos cineastas.”

 

 

Paula DuPre Pesmen:

“A logística desse projeto foi a mais complexa que já trabalhei até hoje e só funcionou porque absolutamente todos os envolvidos mergulharam de cabeça. Para vocês terem uma ideia, nós fizemos todas as reuniões por zoom com eles na Ucrânia, eu no Colorado, uma parte da produção na Califórnia e outra em NY. Estávamos em fusos completamente diferentes. E tudo foi feito com tradutores, pois o grupo não falava inglês e nós não falamos outro idioma.

E a gente queria inscrever o filme no Sundance, então também tínhamos um prazo para terminar tudo. Foi uma loucura! Quando o filme foi aceito, a gente começou a correr para trazer o Slava, a Anya para o festival. Não tem consulado ou embaixada funcionando na Ucrânia para providenciar os vistos. Então tivemos que a achar a pessoa que está lá fazendo isso. E eles disseram que o Frodo (o cachorrinho mais fofo do mundo, tanto na telona e como pessoalmente) viria com eles. Eu não tinha ideia da burocracia que é para trazer um cachorrinho pra cá. Até foto do dente dele, eles pediram. Mas, corremos contra o tempo e conseguimos.

Quando nos conhecemos pessoalmente no aeroporto de Salt Lake City (próximo à Park City onde acontece o Sundance Film Festival) muitas lágrimas e abraços rolaram.

 

 

Aí nos ganhamos o prêmio em Sundance e fomos abraçados pelo público e crítica, o que nos deu muita força para toda a trajetória que culminou na indicação ao Oscar. Realmente é muito emoção e muito satisfatório saber que mais gente está conhecendo a história deles. Afinal, esse era o nosso objetivo desde o início.

E olha, um detalhe importante, na época do Sundance, quando chegou aqui, o Slava ainda não falava inglês, muitos tradutores contribuíram conosco. Ele aprendeu inglês em abril. Impressionante como ele fala bem, né?! Mais um sinal do seu brilhantismo.”

Frodo foi o centro das atenções do papo, assim como é o protagonista mais gracioso desse documentário que emociona, ensina, educa e mostra o poder da resiliência através da arte e da união da comunidade.

O inglês do Slava é incrível como a arte que produz com a esposa que conhece desde que nasceu. Mas para saber o resto dessa história fascinante e bela, que vai além da guerra, assista esse documentário poderoso. Um dos meus favoritos do ano!

Não deixem de conferir os outros docs indicados ao Oscar. Saiba porque No Other Land, Black Box Diaries e Sugarcane também são imperdíveis:

 

 

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