Resgatando o início da era digital, quatro temporadas de Halt and Catch Fire têm seu ponto forte nas relações

Eu não sei onde minha alma seriática estava entre 2014 e 2017 que ainda não tinha se viciado em “Halt and Catch Fire. A série da AMC, que teve 4 temporadas, está em 17º lugar na lista dos 50 melhores seriados do século XXI, publicada pelos críticos de TV no The Hollywood Reporter.

Achei o título curioso e, apesar de nunca ter ouvido falar da série, eu já conhecia o elenco de outros trabalhos, animei e resolvi conferir o piloto. E foi vício à primeira vista, tanto que engoli todos os 40 episódios, com taças de vinho na madruga, e xícaras de café nas manhãs, dos poucos dias que levei pra terminar a minha maratona.

“Halt and Catch Fire” é brilhante e fascinante, mas acredito que o título enigmático também não tenha ajudado a popularizar a série. Enfim, estou aqui pra dar uma força, sim, direto do túnel do tempo, trazendo um seriado antigo de volta às manchetes, porque esse merece.

Para começar, explicamos o significado que aparece na primeira cena do piloto (e esse é o único “spoiler” que vou dar nessa matéria):

“Halt and Catch Fire” refere-se a um antigo comando de computador que fazia com que a máquina entrasse numa condição de competição, fazendo com que todas as funções competissem por superioridade ao mesmo tempo. Com isso, a unidade central de processamento do computador para de funcionar e o controle do computador não pode ser recuperado.

Por aí, vocês já têm uma noção que ambição e competição são fios condutores da série que começa em 1983, no momento em que a empresa IBM está conquistando o mercado de computadores pessoais com o IBM PC. O empresário Joe MacMillan (Lee Pace) é contratado por John Bosworth (Toby Huss), CEO da Cardiff Electric, uma empresa de software fictícia, com sede em Dallas, e tem a visão de criar um computador revolucionário para desafiar a IBM. Para o projeto, ele conta com a ajuda do engenheiro de computação Gordon Clark (Scoot McNairy) e do programadora prodígio Cameron Howe (Mackenzie Davis).

Gordon é casado com Donna Clark (Kerry Bishe), que se formou em informática na Universidade de Berkeley e tem a difícil tarefa de equilibrar o trabalho com a criação das duas filhas pequenas, enquanto o marido se dedica totalmente ao novo projeto que começa a desenvolver com Joe, que além de apostar todas as fichas no desafio profissional, vive um tórrido romance com Cameron.

Tecnologia está longe de ser um dos meus assuntos preferidos, mas “Halt and Catch Fire” me lembrou do dia que ganhei meu primeiro computador.

Eu tinha 16 anos, em 1989, quando meu pai apareceu em casa com o tal computador pessoal da IBM, que é o foco da primeira temporada da série. Na época, a máquina era grande e ocupava bastante espaço, a tela era verde, não existia mouse. Para funcionar a gente usava um disquete (já ouviram falar?) com o programa DOS. O acesso era discado (fazia um barulho gigantesco) e usávamos a linha telefônica, que ficava ocupada enquanto estávamos no computador. Impressionante como a revolução digital foi rápida e o mundo é outro apenas 34 anos depois.

Pra mim também foi uma delícia mergulhar nas décadas de 80 e 90, que marcaram a minha infância, minha adolescência e minha juventude. A moda, a maquiagem e os penteados de gosto duvidosos, os cenários, que me levaram de volta à casa das minhas avós e dos poucos amigos ricos que eu tinha na época. (Naquele tempo ter uma piscina em casa era coisa de gente muito abonada).

Revisitei a Las Vegas que eu conheci naquele mesmo ano em que ganhei o meu primeiro computador. Mas, foi a trilha sonora deslumbrante que ativou todos os meus gatilhos, a primeira paixão na escola, as festas dançantes com os amigos, as dores de cotovelo que, aos 15 anos de idade, faziam parecer que o poço nunca teria fim. Momentos inesquecíveis da minha privilegiada juventude que foi saudável, divertida, repleta dos dramas e descobertas pertinentes a idade.

Mas a caracterização, as locações e até a música, não seriam suficientes para classificar o seriado como um das melhores do século. Para tal, levei em consideração o roteiro brilhante e o elenco que é excepcional e transborda química.

Não só os pares românticos têm uma química que chega a ser paupável, mas todos os cinco protagonistas funcionam perfeitamente nos seus plots em duplas, trios e quartetos. Aliás, uma coisa que me chamou a atenção em “Halt and Catch Fire”, o elenco todo, praticamente, nunca interage junto. Existem um enredo geral que é desenrolado em paralelo pelos personagens, seja na interação de Cameron e Joe, ou Donna e Gordon, ou Bos e Cameron, ou Gordon e Cameron, ou Donna e Bos, ou Joe e Donna, ou Bos e Joe, ou a que ganhou mais destaque ao longo dos anos (e, pra mim é a melhor), a relação entre Donna e Cameron, duas mulheres geniais, talentosas, top em suas carreiras, que precisam enfrentar o machismo do mercado de trabalho (se é péssimo em 2023, imaginem como era nos anos 80!) para serem ouvidas, respeitadas, reconhecidas e remuneraras. Enquanto isso, ambas lidam com suas questões pessoais, seus egos e os problemas dessa parceria profissional, combinada com amizade.

Essas duas maravilhosas atrizes protagonizam as cenas mais profundas e sinceras de “Halt and Catch Fire”. Uma aula de feminismo sim, mas um estudo sobre amizade entre duas mulheres de gerações diferentes que têm muito mais em comum do que elas mesmas gostariam.

O início da era digital passa a ser apenas um pano de fundo relevante, mas secundário, especialmente na terceira e na quarta temporadas, quando os personagens amadurecem e enxergamos melhor suas características boas e péssimas. Porque outra coisa que me fez amar essa série é que não existem vilões e mocinhos, os personagens são seres humanos, erram, acertam, magoam. Todos são controladores, críticos, exigentes uns com os outros, e, ao mesmo tempo que carregam seus traumas e priorizam suas ambições, são capazes de destruir uma amizade, um sociedade, um casamento, para conquistar seus objetivos.

Essa é uma daquelas séries que não têm mimimi. Os personagens nos surpreendem com atitudes que odiamos e outras tantas que adoramos. Como na vida, a gente se orgulha de muitas coisas e se arrepende de outras, mas segue a nossa caminhada cometendo mais erros que acertos, ao mesmo tempo que aprendemos a perdoar e a pedir perdão, dizer nunca mais e implorar uma segunda (ou décima) chance, fugir quando tudo deu errado e voltar pra casa pra recomeçar.

Engraçado que a série aborda a era digital, mas sua narrativa é lenta, o que eu particularmente prefiro também. Então não esperem a velocidade de um stories ou reels do Instagram. Ao contrário, as cenas são longas e reproduzem os diálogos no tempo do mundo real. Geralmente com poucos personagens batendo papo cabeça.

Os momentos coletivos acontecem e são caóticos e barulhentos, como numa festa, ou em um escritório de tech, todo mundo fala rápido e ao mesmo tempo, joga videogame, grita, como a vida real mesmo. Mas, são nos momentos de silêncio que estão as melhores performances.

Ao longo de pouco mais de uma década, os 5 protagonistas têm uma jornada de altos e baixos. Alguns atores entram e saem para fazer a trama andar, mas a série está centrada nos personagens Cameron, Joe, Gordon, Donna e Bos. Essa galera surta, faz sexo, apunhala o amigo pelas costas e é apunhalado também. Ao mesmo tempo, eles sofrem bullying, passam por um divórcio, fracassos profissionais, doença incurável, luto, gravidez indesejada, bissexualidade e aborto (que nos anos 80 era permitido no estado do Texas e, em pleno 2023, não é mais. O que mostra o retrocesso nos EUA).

Um outro fato que a gente não vê em muitas séries com frequência são as passagens de tempo dentro de uma mesma temporada. Em “Halt and Catch Fire”, os roteiristas conseguem mostrar que 4 ou 2 anos se passaram de uma maneira tão singela que precisamos estar bem atentos para perceber. Eles fizeram isso brilhantemente na terceira temporada. Às vezes, a marca da passagem de tempo está em um detalhe da cena, outras em uma frase simples durante um diálogo despretensioso. Esse é um recurso corajoso que funcionou porque foi muito bem articulado.

Fiquei tão alucinada com a série, que fui caçar entrevistas que o elenco deu na época que estava gravando a quarta e última temporada, em 2017. Numa delas, Mackenzie Davis conta que os protagonistas se reuniam aos domingos, na casa do Lee, que interpreta o Joe, para tomar vinho, conversar e ler o roteiro juntos, assim, mesmo gravando e tendo cenas separadas, todos podiam ter uma noção melhor do que estava acontecendo na estória como todo. Ela diz que foi uma ideia do próprio Lee e que esses encontros foram fundamentais para desenvolver a química do grupo, que é o pilar do seriado. Segundo Mackenzie, eles ficaram muito amigos, tomavam porres e faziam confidências. E a gente vê mesmo uma intimidade grande entre eles na tela e agora sabemos que veio desses “hangs” da vida real.

A menina de 16 anos, que ainda vive no meu corpo de 51, não ficou só empolgada em relembrar os jogos de Atari (o único videogame que eu tive na vida), como também shippou muito a Cameron e o Joe (o relacionamento deles é doído, mas funciona), mas minha experiência como fã de séries, jornalista de entretenimento e estudiosa de roteiros de televisão também garante que as quatros temporadas de “Halt and Catch Fire” são incríveis e a série merece todo o destaque e atenção que recebeu dos críticos.

Eu deixo aqui um carinho especial pelos quatro últimos episódios da quarta temporada. Sem spoilers, só digo que eu chorei de soluçar assistindo ao sétimo e ao oitavo episódios e, na finale, especialmente, no discurso mais autêntico que já vi, feito por uma personagem mulher numa série.

Os dois últimos episódios (9 e 10) partiram meu coração, mas juntaram os pedacinhos também. Os criadores não romantizaram as ações dos personagens e eu aplaudi todas as decisões tomadas pelos roteiristas e diretores. A vida como ela é, sem pieguice, realista, onde desencontros geram encontros e onde desafios são superados para sonhos serem realizados.

No final de tudo “Halt and Catch Fire” é um choque de realidade que nos faz pensar nos erros e acertos da nossa própria trajetória, ao som de Dire Straits, uma das minhas bandas favoritas. Nota 10! Imperdível!

Trailer Primeira Temporada:

Trailer Segunda Temporada:

Trailer Terceira Temporada:

Uma Viagem aos Anos 80:

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